Antes dos meus pais terem o bar, minha mãe trabalhou muitos anos como camelô na passarela debaixo da estação de trem do Gramacho, um bairro aqui de Duque de Caxias, o mesmo do famoso documentário “Lixo Extraordinário”. Ela acordava muito antes do que qualquer pessoa que trabalha muito cedo acordava, e quando criança eu acreditava que minha mãe era a única acordada naquele horário em todo o planeta. Ela preparava cerca de 15 garrafas térmicas de café e chocolate quente comportadas em duas grandes bolsas de nylon super reforçado.
De segunda a sexta ela pegava o ônibus, soltava na estação, subia a passarela para pegar exemplares para revenda dos jornais “O Povo”, “O Globo” e “O dia” e terminava de montar sua barraca: uma mesinha, que sequer cobertura tinha – a cobertura era a própria passarela – e já estava devidamente a postos bem antes que a maior parte dos trabalhadores começassem a circular. Logo o silêncio da madrugada acabava dando espaço a muito vuco-vuco na estação, sons de passos rápidos, de bolsas, de jargões de vendedores e de cheiro de pós-barba, Derby e Charisma misturados a outros típicos de uma estação.

Lembro das poucas vezes que fui acompanhá-la, ficava empolgada e mal conseguia dormir na noite anterior, ansiosa para ser a segunda pessoa do planeta acordada, junto da minha mãe. Era um silêncio absurdo nas primeiras horas da madrugada, fria, como se algo estivesse sempre prestes a acontecer. As pessoas que trabalham na madrugada eram focadas, porém visivelmente resignadas. Eram divertidas, iam gradativamente ficando comunicativas, como se respeitassem aquele despertar antinatural. Eu gostava daquele clima e me sentia segura e acolhida, parecia uma família numerosa. Minha mãe me apresentava com orgulho aos seus vários amigos, intermináveis, uma rotatividade sem fim, sempre tinha alguém para conhecer.
Minha mãe e os amigos brincavam muito entre si no período do trabalho, acho que era uma forma de se manterem despertos. Rolava um senso de coletividade, todo mundo tomava conta de todo mundo: “Roberta, olha aqui minha barraca? Vou ali no bar e já volto”. Minha mãe tinha esse apelido de “Roberta” por ser fã de Roberto Carlos e lá era como todos a chamavam, parecia que eu conhecia uma segunda identidade de minha mãe. Ali não tinha cara torta, não tinha comentário maldoso, não tinha julgamentos nem perguntas. todo mundo estava ali por um motivo implícito, todo mundo tinha uma história densa de vida e isso bastava.
Eu gostava muito dos amigos da minha mãe. O Francisco era um amigo de anos, a ajudou em muitos momentos e fazia o melhor doce de mamão verde que já comi na vida. Havia também uma senhora muito idosa, que morava numa das habitações próximo ao aterro sanitário, gostava muito de mim e uma vez me deu brincos muito bonitos, dourados com detalhes e uma miçanga turquesa belíssima, eu agradeci e fiquei sem graça de dizer que ainda não possuía furos na orelha (fui usá-los já na adolescência, mas infelizmente ela já havia falecido).
No tempo que ficava ali com minha mãe, além de tomar o chocolate quentinho que ela fazia com tanta dedicação, podia ir ao jornaleiro pegar os gibis que quisesse “que depois ela acertava”. Era uma banca de revistas usadas, eu era a fanática por Turma da Mônica e essa banca tinha muita fartura de edições anteriores. O dono, inclusive, um barbudo super boa praça de óculos aviador e cabelos lisos, me viu crescer e guardava edições de Almanacão intactos para mim. Uns anos depois, migrei de Turma da Mônica para revistas Capricho e Carícia e ele continuou com o mesmo gesto, sempre guardando num cantinho as revistas recém garimpadas. Depois nunca mais o vi.
Minha mãe tinha costume de levar para casa um exemplar de cada jornal, mas não podíamos ler o “O Povo”. Era um jornal com muitas notícias sobre violência. Tinha folhas numa tonalidade de rosa, por algum motivo que desconheço, e fotos de capa com apenas o mais cru da violência: pessoas baleadas e/ou mutiladas, entre outras coisas que aconteciam em diversas áreas do Rio de Janeiro. Passei a burlar a regra e os ler escondido, por pura comichão, e passei a devanear universos entre a Rua do Limoeiro e a realidade nua da cidade onde eu morava.
Anos depois, quando tive oportunidade de participar de um projeto parceiro para a revista Capricho, coloquei meus pés num bairro considerado nobre pela primeira vez na vida e senti um contraste muito acima que meus privilégios poderiam imaginar. Mesmo hoje em dia considerando ter sido uma experiência plástica, é um momento que recordo com orgulho. Mas nada me impactou e possuía tantas camadas como as madrugadas aquecidas a chocolate quente na estação do Gramacho…




Que texto quentinho! ❤️❤️❤️
Que graça, amiga!
Esse texto aquece o coração sabe? Conhecer suas memórias e um pouco da sua infância e da sua história com a sua mãe. Amei o cuidado do jornaleiro hehe e do paradoxo entre o bairro pobre e o nobre.
Esse título…. essa ilustra das sacolas… vc é otima
Que texto! Lembrei de quando meu pai saía pra trabalhar de bicicleta, 1ª hora da manhã, com o prendedor de roupa na barra da calça… essas memórias afetivas são o que ficam, são o que nos constituem ❤️
Verdade amiga. Muitos pedacinhos aleatórios que separados não parecem dizer tanto, mas junto é isso: quem somos.
Ahh, fico muito feliz que tenha gostado <3
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Muito fofo esse gesto, né? Pequenas gentilezas que faz diferença na vida inteira.
<3 <3
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bem quentinho <3
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